Entrevista Vasco Trancoso

Entrevista Vasco Trancoso
Entrevista Vasco Trancoso

Entrevista ao Vasco Trancoso para o fotografiaderua.com.

QUANDO E COMO FOI O SEU PRIMEIRO CONTATO COM A FOTOGRAFIA?

Quando terminei o curso de medicina, comecei a fazer fotografia depois de o meu pai me ter oferecido uma Nikon F2. Estávamos na época de ouro da fotografia analógica. Além de “Candids”, fotografei alguns circos itinerantes, alguns dos episódios do 25 de Abril de 1974, “Graffitis”, sobre a Vida e a Morte nos antigos Hospitais Civis de Lisboa e ainda os denominados ” lares” para idosos.

DESDE ENTÃO FOI UM PROCESSO CONTÍNUO ATÉ HOJE OU HOUVE INTERREGNOS? NESTE ÚLTIMO CASO PORQUÊ?

Apesar de em 1991 publicar um livro (“Sobre as Águas”) com fotografias sobre o Hospital Termal Rainha D. Leonor, foi só após a reforma que voltei a dedicar-me à Fotografia, depois de um longo interregno durante o qual desenvolvi a actividade de médico Gastrenterologista – tendo sido Presidente do C. de Administração do C. Hospitalar das C. da Rainha. Em consequência, desde 2010 o fotógrafo tem progressivamente ocupado o lugar do médico em mim.

COM QUE ÁREA DA FOTOGRAFIA MAIS TE IDENTIFICAS OU PREFERES TRABALHAR? QUAIS AS RAZÕES DESSAS PREFERÊNCIAS?

Quando comecei, em 2010, a fazer fotografia digital (primeiro com uma câmara compacta de bolso) foi um impulso natural fotografar a Lagoa de Óbidos (a 8 km de distância da minha casa) que é a mais bonita e a maior de Portugal.

Mas tudo mudou desde Outubro de 2014, quando redescobri o prazer (irresistível) de fazer fotografia nas ruas. Uma obsessão saudável e salvífica que me “obriga” a longas caminhadas diárias. Sem a fotografia talvez já não existisse. A fotografia também é o meu “antidepressivo” nestes dias após a reforma. A fotografia feita na rua fascina-me pela imprevisibilidade e representa uma tentativa mais eficaz de me conseguir conectar com o mundo material que me rodeia. Foi mais fácil quando se tratou de imagens em plena serenidade da Natureza. É um desafio maior, agora, quando estou rodeado na cidade por pessoas. Estou consciente que a “temeridade” de passar anos a fotografar no “caos” urbano pode conter riscos. Riscos que valem a pena pois as fotografias que vou fazendo são sinais que me conduzem para a saída da minha própria caverna de Platão.

Percebi que fotografar é também um modo de pensar e de ler. Fotografar nas ruas de uma cidade é uma constante aprendizagem que obriga a reflexão. Sobretudo sobre a vida das pessoas. Acaba por ser um acto de amor pelo nosso semelhante dito por imagens.

Ao enfrentar os outros acabo também por me enfrentar a mim próprio. A fotografia feita nas ruas é, para mim, um difícil exercício de comunicabilidade que me obriga a ultrapassar a minha timidez natural e ser uma pessoa melhor. Fotografo para aprender. Afinal um sinal de que a busca pessoal e a descoberta continuam. Fora e dentro de mim.

As fotografias de rua são também uma importante vertente de documentação / interpretação sobre o tempo em que são feitas. Nas últimas décadas aumentou o número das cidades pelo mundo (mais de 50% da Humanidade vive em cidades) representando o maior “artefacto” produzido pelo homem. Assim, a fotografia de rua – feita em lugares públicos – acaba por ser um retrato importante da nossa civilização.

No entanto não sei se deva chamar de ”Fotografia de rua” àquilo que faço. Como sabe existem controvérsias sobre a aplicação deste termo. Enquanto uns mais puristas defendem que Fotografia de rua deve ser exclusivamente “Candid” e feita sub-repticiamente à revelia das pessoas (para não modificar o fluxo normal dos acontecimentos), outros mais tolerantes têm um conceito mais lato – onde conta sobretudo o resultado final. Penso que mesmo fazendo “Candid shots” a realidade é sempre de algum modo modificada. Bastam as margens do enquadramento para separar dois mundos (in e out) e criar o mundo mágico da fotografia que acaba por ser diferente daquilo que se passou na realidade. Prefiro dizer apenas que as minhas fotografias são feitas pelas ruas e com as pessoas. Não me detenho nem preocupo com classificações que me podem impedir de fazer o que sinto, e como desejo, em plena liberdade intelectual.

ACHAS FUNDAMENTAL A APOSTA NUM DETERMINADO GÉNERO DE FOTOGRAFIA, OU UMA MESMA PESSOA PODE OU TEM ESPAÇO PARA DESENVOLVER EM SIMULTÂNEO VÁRIOS PROJECTOS DIFERENTES?

Depende da ambição do projecto fotográfico. Em geral o reconhecimento do fotógrafo pela respectiva comunidade surge quando aquele apresenta um estilo próprio e um trabalho coerente – que traz uma “visão” nova. Esse fotógrafo destaca-se porque transmite a noção de “auteur” (capacidade de inovação) e as suas fotografias constituem-se como um “corpus” (coerência de conjunto).

As fotografias são estimulantes quando trazem algo de novo. Não só porque o fotógrafo é diferente – e é esse individuo que se exprime – mas porque procura transmitir o seu próprio olhar liberto de evangelhos, dogmas ou códigos predeterminados sobre fotografia.

No entanto, a Fotografia como qualquer outra Arte é um espaço enorme onde cabem todos os géneros de gostos e onde não existem normas fixas de avaliação nem tradição canónica. Um espaço de Liberdade e Tolerância.

O processo de maturação de um fotógrafo demora muitos anos e subitamente pode desembocar num ponto de viragem e acelerar para um patamar diferente. Como por exemplo mudar do P&B para a cor ou o contrário.

QUAL FOI A SENSAÇÃO AO SABERES QUE, PELA PRIMEIRA VEZ, UM TRABALHO TEU IA SER EXPOSTO?

Há sempre um certo “suspense” sobre o modo como irá ser acolhida uma exposição. No entanto a partilha quer em exposição quer em livros é essencial. A fotografia só chega ao seu estado definitivo quando fica impressa em papel e é palpável e não apenas uma imagem virtual num ecrã retro iluminado.

A partilha de imagens é, também, importante porque só quando outros fotógrafos olham para o nosso trabalho – e estabelecem uma conexão e uma conversação sobre as nossas imagens – é que o nosso olhar fotográfico finalmente pode crescer. É mais fácil ver os pontos fortes e fracos nas fotos dos outros do que nas nossas. Aprendemos com os outros e os outros aprendem connosco.

E QUANDO FOSTE CONVIDADO PARA O PRIMEIRO TRABALHO “A SÉRIO”?

Essencialmente fotografo para meu próprio prazer. Felizmente que fui médico pois agora posso fotografar sem ser “funcionário” fotográfico. Talvez não fosse capaz de fazer fotografia por encomenda. A fotografia é, para mim, um espaço de liberdade onde evoluo de um modo solitário. Nesses momentos só a fotografia existe e esqueço-me de mim próprio.

NO ÂMBITO DA TUA CARREIRA, SEJA AO NÍVEL DE AUTOR OU COMERCIAL, QUAL OU QUAIS OS PROJECTOS QUE AINDA ESTÃO NA GAVETA, MAS QUE TÊM QUE SER FEITOS?

Gostaria de fazer uma exposição e publicar um livro com o meu trabalho de rua feito ao longo dos últimos 2 anos. Como 90% das fotos foram feitas nas Caldas da Rainha o seu conjunto acaba por representar, para além de uma crónica sobre mim mesmo, uma certa crónica desta cidade no início do século XXI.

SENDO O PROCESSO CRIATIVO ALGO TORTUOSO, TENS ALGUMA(S) TÉCNICA(S) OU METODOLOGIA QUE SIGAS PARA CONSEGUIRES DESBLOQUEAR O PROCESSO QUANDO ELE PÁRA MESMO?

Em geral tenho a rotina diária de deambular pelas ruas e tentar encontrar algo de extraordinário – dando visibilidade à aparente invisibilidade de momentos mágicos da vida diária, ou tentar revelar aspectos surreais, absurdos, incongruentes, coincidentes, bizarros ou estranhos, bem como as contradições da vida urbana. Nem todos os dias temos boas surpresas. Se acontece que o “Deus dos fotógrafos” está comigo – fico feliz em descobrir uma ou duas boas imagens. No entanto se não “encontrei” uma oportunidade para fazer uma boa imagem penso sempre que mais vale isso do que ficar em casa arrependido e a pensar que poderia ter “apanhado” uma boa foto. Pelo menos tentei e no dia seguinte saio novamente para a aventura da rua.

QUAIS OS TEUS FOTÓGRAFOS DE REFERÊNCIA OU QUE, DE ALGUMA FORMA, TE INFLUENCIAM OU INFLUENCIARAM?

A influência mais importante foi a descoberta das fotografias de Tony Ray-Jones, na década de 1970, integradas no seu livro “a day off”. A sátira social e o humor subtil aliados a enquadramentos inteligentes e complexos (e subversivos) fizeram com que eu passasse a ver fotograficamente de um modo diferente e mais profundo. Outra influência significativa foi o olhar quase “caricatural” de Fellini.

QUE EQUIPAMENTOS USAS E QUAIS AINDA TE FALTAM PARA TERES O QUE “KIT” PRONTO?

Uso uma Canon Mark III e uma Canon 5DSR com lentes: 11-24mm e 24-70mm e, desde há 2 meses, uma Leica Q. Mas julgo que não devemos ser escravos da técnica – que não consegue substituir o estilo, a emoção e a sensibilidade estética. O meio – fotografia não é tão importante quanto a própria imagem. A “alma” da imagem é mais importante do que os detalhes técnicos. Quando aprecio uma grande foto não pergunto “como?” mas “por quê?”. Existem diferenças entre um piano e uma sonata. Podemos possuir um piano topo de gama e não conseguir produzir boa música.
A fotografia pode ser ensinada mas os restantes 90% aparecem só à custa de suor, sangue e lágrimas do fotógrafo. A teoria e a técnica fotográfica são necessárias mas não são o mais importante. As fotografias não são as regras com que, por vezes, as tentam espartilhar. Quanto mais vemos fotos dos grandes mestres – mais descobrimos imagens que quebram aquelas regras. E não deixam, apesar disso, de ser grandes fotografias. Porque têm alma. A câmara é apenas um instrumento de navegação da alma.

FILME OU DIGITAL? PORQUÊ?

Neste momento digital. Porque, felizmente já existem câmaras com sensores que registam imagens satisfatórias e porque poupa gastos em filmes, revelação e ampliação ou digitalização.

TÉCNICA OU CONTEÚDO? PORQUÊ?

Idealmente ambos. No entanto uma foto não se sustenta apenas numa execução tecnicamente irrepreensível. Ao contrário – o conteúdo pode ser tão significativo que a técnica, nesse caso, não é importante.

Hoje uma das situações mais interessantes e belas da fotografia de rua, como em muitas outras obras de arte, é o significado que pode estar por detrás das imagens que deixam tudo em aberto para as diferentes interpretações de cada observador. Daí serem cada vez mais valorizadas as fotografias de rua que privilegiam a possibilidade de encontrarmos alguma narrativa nas entrelinhas das expressões e ou situações dos vários personagens não se limitando a uma perspectiva de reportagem, ou apenas descritiva.

QUE CONSELHO GOSTAVAS QUE TE TIVESSEM DADO NO INÍCIO, QUE AGORA DARIAS A QUEM ESTÁ A COMEÇAR?

Ande sempre com uma câmara, caminhe muito e aproveite o acaso. Os milagres diários estão à sua espera.

Não tenha planos pré-concebidos rígidos (tempo e trajecto) quando sair para fotografar. A paciência e o saber esperar são imprescindíveis.

Não se preocupe com a definição de “fotografia de rua” e fotografe regularmente.
Veja oportunidades para fotos em tudo o que o rodeia. No entanto seja muito selectivo e fotografe apenas aquilo que lhe parece fazer a diferença. Evite as fotos que são claramente um não assunto. O mundo já está cheio de “lixo” fotográfico (ex. fotografar as refeições – que são sobretudo para saborear em paz e alegria). Uma boa regra em fotografia de rua é seleccionar apenas um a cinco por cento das fotos realizadas.

Viva apaixonado pela fotografia – sem restrições e mantenha-se focado em cada imagem que está a fazer. Fotografe cada foto como se fosse a última e não seja um escravo da técnica fotográfica.

Depois de olhar volte a olhar novamente. Visite os mesmos locais descobrindo novas oportunidades (luz, motivos, etc.).

Muitas grandes fotografias ainda não foram fotografadas (o mundo está cheio de oportunidades). A beleza está em toda parte.

Faça as imagens para agradar a si próprio e não procure comparar o seu trabalho com o dos outros. Não se deixe impressionar por falsos elogios e bajulações nem por subavaliações intencionais que satisfazem apenas estratégias pessoais dos seus autores. Ou seja, procure praticar a autocrítica e procure Verdade. As suas fotos falarão por si.

Consciencialize-se que construir um estilo próprio leva muito tempo. Sem negar todas as influências que teve seja genuíno e não procure a imitação bacoca.

Seja honesto para consigo próprio e para as pessoas que fotografa. Procure sempre enquadrar três planos conferindo profundidade às imagens mas evitando as sobreposições de motivos.
Solicite sempre autorização para publicar fotos de alguém – antes ou após fazer as fotografias – e mostre as imagens obtidas. O respeito recíproco faz milagres.

Leia muitos livros bons sobre Fotografia de Rua (Magnum Contact Sheets; Dan Winters; Alex Webb; Robert Frank; Martin Parr; Trent Park; Joseph Koudelka, etc) e veja muitas fotos dos grandes autores.

Desafie as regras e procure sempre evoluir transformando progressivamente o olhar fotográfico. A criatividade, uma boa narrativa uma atmosfera especial e o “mistério” numa foto não convencional podem ter uma força muito grande.

LIGAÇÕES:

Publica um blogue fotográfico – “Heavenly” – vascotrancoso.blogspot.com
Tem no Facebook (facebook.com/vasco.trancoso) uma página (Vasco Trancoso – Photography ) onde expõe os seus trabalhos mais recentes. Publica regularmente ainda nos seguintes Sites de Fotografia:
500px (500PX): Flickr (Flicker);
World Street Photography (world-street.photography/en/vascotrancoso );
FineArt (fineart-portugal.com/author/10849) ;
Olhares (olhares.sapo.pt/vascotrancoso)

e a sua galeria no nosso site.

2 replies on “ Entrevista Vasco Trancoso ”
  1. Excelente o fotografo e excelente a entrevista. O fotografo é alguém para continuar a seguir o seu belissimo trabalho esperando que consiga muito brevemente concretizar o seu objectivo, um livro que será, seguramente, a não perder.

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